Danses de Travers
gosto de serragem
na boca trava os dentes
tato na treva
rompe a jugular
cheiro de erva
alarga o peito
cheio de terra
-
a melodia
entre escolhos
a poesia de salto alto
dedos sobre o teclado
percorrem notas
sobre o abismo
-
perceber
o silêncio entre notas
o vir a ser por acaso
o furo do sexo de um devir
a forma do corpo que dança
*
deus é um ser que dança
o homem cruza as pernas sob a mesa de um café
fuma
a dança de um deus
sobre a palma da mão
a sombra de um deus que dança
dançar é próprio de um deus
*
palavra também é deus
palavra no início foi canto
deus é um ser que canta
*
rememora o que vai morrer.
tantas coisas! – o que dizer?
o que acontecerá, se foi – já era.
cravada uma agulha
atravessa,
trespassa
segura no umbigo
o eixo do mundo
*
o morto vincou
a face no espelho
sorriu
pra si mesmo
só há espelho na face
a face do espelho é você?
nele só há superfície?
*
a mulher
que ficou na taça
tira a roupa
dança
e banha-se na champanha
*
dedilha um corpo
o martelar de teus dedos
no teclado
de inumeráveis
inconfessáveis pecados
*
falar sobre o silêncio
não é silêncio
escrever a respeito do silêncio
não é silêncio
fazer música sobre o silêncio
não é silêncio
face ao silêncio
tudo é mudo
o livro toca
é silêncio
o vento geme
é silêncio
o coração pulsa
o sangue lateja
o canto das sereias
a música das estrelas
o poeta surdo-mudo
tartamuda
uma rima que ele nunca escuta
o chute no saco
o cuspe na boca
de quem a beijou
os poetas são assim
namoram o silêncio
com a palavra
silêncio feito de palavras
*
você gosta
do meu acorde?
coração de ouro
o meu tesouro
é uma rima
coração de poste
a lua
uiva
um lobo
bala de prata
no coração
*
dedilhas
a minha
cintura
sintaxe
redondilha
passeias
nas teclas
de meus botões
em flor
eu sou
inteira
entregue
tu gozas
tocas-me
os dedos
sou
teu piano
que rodopia
e dança um traço
em torno
a ti
em voltas
que não
se acabam
a não ser
no âmago
e dói
e quanto!
e quanto
mais dói
em mim
mais gostas
como
em ti
tuas mãos
dedilham
minha cintura
uma valsa
enquanto
comigo danças
e tocas
minhas teclas
teu bigode
teu cavanhaque
de bode velho
bem aparados
pois frequentas
manicures
e em garsonieres
fazes teu pasto
passeias
em mim
tuas mãos
enfias-me
os dedos
nos orifícios
com a
língua
torces-me
o umbigo
depois de me levares pra jantar
*
a caneta
no papel
abre
os pulsos
mostra
o pendular sentido
o sim e o não
o tique e o taque
– ou tic-tac –
o Tico e o Teco
da anedota
dos neurônios
em constante
assim
angustiante
dois
tome cuidado, amigo
com esses dois
eles são um
e não sabem
temem a si mesmo
no outro
um ser assim
não inspira confiança
*
é fino
o batido do piano
o motor
quando encosta
o nervo
exposto de um dente
um piano exposto
o teclado ri
se escancara
brancos e pretos
encardidos de sangue
como a caveira
ri
o teclado
de escárnio
pois sabe
que dentro de nós
uma igual
caveira se arreganha
de reconhecimento
e sem que soubéssemos
devolvemos a ela
o riso arregaçado
pois um dia
seremos também descarnados
o piano
como a caveira
sempre se ri
*
parece que bateram nele
no pianista
até quase a morte
em um beco atrás do lupanar.
quiseram calar suas mãos
tentaram fazer doer sua consciência limpa
desceram o tampo do teclado
sobre seus dedos
cortaram sua língua vaginas de mulheres
mórbidas.
licores roxos à meia-luz
o penhoar aberto para o delírio
do qual não há volta
a não ser renovado
como no rio heraclitiano
*
Tu nunca deras bola ao Brasil, Satie.
Nunca prestastes atenção ao ouvires falar
sobre ele.
A não ser que te lembres de ter alguma vez
ouvido
na Vie
Parisiense, de Jacques Offenbach
um brasileiro alegre
entre maracutáias, cantar.
Certamente ouviras falar
de um tal Santos Dumont
a dar uma volta completa
em uma geringonça voadora
na indiferente torre de ferro
que domina a paisagem de tua amada cidade.
Mas esse nome se refere a uma pessoa, não a
um país,
e não deves ter pensado
em um lugar tão distante
do horizonte de tua própria casa
ao saberes
de um mais pesado que o ar
obedecendo ao controle de um homem.
Mas é de cá deste Brasil
que eu te ouço
e me dirijo a ti,
pois em meu belo horizonte estás
como em delírio aos meus ouvidos
eu todo entregue, como uma puta.
Meus horizontes são mais largos,
abarcam uma vasta costa,
e há mais de um século depois de ti
te escuto, sinto, avalio
e te penso e teu som
de um ponto de vista inimaginável por ti.
Eu, que sou e estou tão aquém de um ponto de
vista mais inimaginável ainda no futuro,
eu que sou e estou no passado de um presente
que já está lá no futuro,
ao mesmo tempo que estou e sou o futuro de
teu presente.
Ernesto Nazaret
*
ouvir Ernesto Nazareth pensando em Eric Satie
pensar em Ernesto Nazareth ouvindo John Cage
dedilhando seu piano infernal
preparado
as estruturas internas expostas
um pianista que mexe as entranhas de seu
instrumento
como se este fosse a mulher
e aquele um cirurgião
e retirasse dela mistério e sonho
arreganhando-lhe o sexo
exuberando o oculto
com a intervenção brutal
das mãos delicadas de um pianista.
deixa pingar sons como notas soltas, fofas,
estragadas,
deixar antever morangos mofados, dentes
cariados, gosto de beijo de puta.
os sons a orvalharem e escorrerem como
lágrimas notas como ponta de agulha
– aço
de punhal – o “não” ouvido de um bem-amado.
pungente
mas não melodramático
cheio de evasivas emoções,
vadias
o leite derramado
palavras derramadas
a noite se derrama
agastada
sozinha de estrelas
agasalhada entre nuvens.
o pianista mexe o interior do instrumento
como um dentista dedilha um útero
II
*
tocar pianinho
nas tuas costas
na tua barriga-tanquinho teclar
uma valsa
um tico-tico-no-fubá
um samba-canção, um fio-dental
deitados na cama
tangolomando em forrobodó
todos juntos num só
um corpo
uma voz
nós dois
nós
de punhos
nós
de água
nós
de som
piano e mãos
sorri o teclado uma caveira
*
rodopias, meu bem
em minhas mãos
como um peão
sou oleiro feliz
com minhas mãos
afino tua cintura
enquanto giras
e danças
as mãos do poeta dançarino,
oleiro-pianista
dá forma a mulher
a partir da cintura
*
gira, rodopia, roda
e vais e vens
e mais uma vez
não paras, meu amor
por nada
não queres parar
de rodopiar
em minhas mãos
que te modelam
és um jarro de cintura fina
e giras
mulher e música
piano e mãos
*
enquanto isso
no lupanar
toca no piano
de uma tecla só
um sambinha
de uma nota só
o duro dedo
de martelo
do pianista
de amarelo
*
o gosto de dançar coladinho
língua na língua
morna
coração
– aos pulos –
no mesmo compasso
olhar em mormaço
bocas no mesmo passo
corpos deslizam-se
ao lusco-fusco
Francis
Poulenc – Valse
*
pares à postos
rodam
rondam
– ronronam –
em um salão imenso
– as cinturas das mulheres
enlaçadas pelos homens –
rodopiam
sapatinhos vermelhos querem dançar, dançar,
dançar
até que exausta a dançarina morra
as mãos nas cinturas dedilham uma valsa
e dançam, dançam
não querem parar, não sabem parar, não param
por nada
leves dedos tocam
o teclado
a valsa sem fim
e sem começo
*
o sexo exposto como nervo
às vicissitudes do tempo
*
“o amor é a vaga,
indecisa palavra”
Rosa
*
a lua ladina
subiu no telhado
sorriu maravilha
me deu um cagaço
a tal maravilha
é o meu despedaço
me despeço de mim
não sou mais quem falo
Nancarrow
não se dança
Nancarrow
a não ser
drogado
não se o dança
como nos puteiros,
mazurca, valsa, trota, fox-trota
não se samba, se tanga, se forrobodoga?
a máquina peluda
dedilha
a mão da moça
na dança
sei que
trâmite, triste, palavras com esse som, em tram
cheia de trans, trens, trinques, truques,
trâmites, troços
sons em cã, clã, klaxons vibrantes, trânsito
pedregoso
eita música besta!
arreita! Música! Basta!
esmigalha as mãos
do par que dança
a cintura o outro envolve
e evolui
habita o centro
do salão feliz.
*
Nacarrow não lamenta o fim fácil perdido
união de lábios ao pé da escada
– a máquina dedilha um tram trem trim, um
treco, um troço sem fim e sem começo
que não tintina ou tarantina
e não é fácil de ouvir, não se gosta
facilmente, se gosta dificilmente, se gosta ou não se gosta, mas dificilmente
apresenta uma dificuldade para explorá-la, a
música
não se esgota
à primeira vista
não se deve ouvir sem um cuidado, um preparo,
uma acostumação do ouvido, uma mudança nos móveis da casa
uma limpeza, uma largueza dos horizontes de
possibilidades do que se pode apreciar
gostar até do que não se gosta sem
deixar de não gostar
não gostar até do que se gosta
sem deixar de gostar
aprender com o que se gosta ou não gosta
a gostar ou não gostar do que se gosta ou não
sem cair no mal-gosto
*
amar o difícil
preferir o difícil
não facilitá-o
não dar mole ao que é fácil
não facilitar ainda mais o que já é fácil
não se contentar com o apenas fácil
não amar o difícil pelo difícil
não deixar de ver o difícil no fácil
sem complicar as coisas
amar o fácil e o difícil só por amar
o fácil no difícil e o difícil no fácil
*
por que me vens
palavra morta
– amor, quimera –
por quem me tomas?
por que quereis
viver-me
suspiro a mais
se como pedra?
tens um espaço
no tempo
o tempo que o espaço perdura
o transcorrer de um espaço
no tempo
o tempo tem lugar?
o espaço transcorre?
é preciso um corpo para vivê-los
tempo e lugar
a mente a cavalgá-los
palavra é morte
espécie de pedra
que tem um desgaste
no espaço
e no tempo
múltiplos sentidos
adquirem
como corpos
morrem
ou perduram
como monumento
ou museu
*
por favor,
não ouçam Nacarrow.
vocês não vão
gostar
não percam
seu tempo
não assistam
a bons filmes
vocês não vão
compreender
vocês não vão
gostar
não leiam livros.
bons
ou maus
vocês não vão
gostar
de gastar
seus olhos
mente
e tempo
com palavras
vocês são todos imbecis.
Cage
*
nada
o homem não sabe aonde vai
com suas mãos que pulam
sobre o teclado do piano
parecem gotas
esparsas
caindo aqui e ali
nada dizem
nada querem dizer
ou o acaso
esse acaso
este aqui
neste ponto
agora
meio aflitivo
o cotidiano baço
trancs, trencs, sons assim também
vagos
apenas sons
em estado de ruído
como quem
dada diz
como quem
não tem
nada a dizer
como quem
não quer dizer
nada
como quem
não quer
ter o que dizer.
como quem
nada diz
simplesmente
aqui
agora
nada
um Zen
dizer
*
a valsa que se
esconde
a polca é pouca
a rima é boba
o verso,
nem me fale!
reverso
o samba se exalta
e se esvai descabelado
em cambalhotas.
ficam os sons desse piano
baratatontando por quase uma hora
eu que o escuto
sou mudo
não toco, não sei
ouvi-lo é difícil
viver não é fácil
existir
é de muita responsabilidade ser
ouvir essas coisas, então!
tudo demora, tudo depende de outra coisa e
uma técnica, uma arte,
até para ouvir
é música para ver
viver é perigoso, dizia o velho Rosa
assim ouvir John Cage
não se volta mais
como quem se banha no rio
não se pode ouvir ou ver ou assistir ou
pensar ou criar mais nada inocentemente
o dedo no teclado
o piano contaminado
o gatilho
escrever é muito perigoso!
*
dreams
a música parece não parar
vai de um lado para o outro
e não sai do lugar
parece difícil
mas é fácil
parece fácil
mas é impossível
ouvir é um fim
em si mesmo
tocar deve ser
tocar-se
os pingos nos is
em notas breves
calmas
tudo parece dormir
parece luzir
é sonho
a vida em sonho
apaga-se
acende-se
no lusco-fusco
um pisca-piscando
a luz dentro do corpo
o corpo apagado
enche-se de luz
de repente
parece apenas luzir
mas arde
o sol na lapela
Franco Donatoni: Rima
Franco Donatoni: Rima
percorrem
circuitos
rapidamente
nervosamente
avidamente
sem paz
sem ser
evidente
guerra
conflito
consigo
mesma
ansiosa
límpida
rápida
busca-se?
busca-me
o ouvido?
maravilha-me?
pergunta-me?
responde-me?
incomoda-me?
tudo isso
junto
separado?
não parece
música
parece
piano
sugere
mãos
sobre
corpo
nu
Yuji Stoh
Yuji Stoh
*
o pianista
as mãos
do pianista
o piano
a partitura
pautas
notas
sobre pautas
o compositor
o sonho do compositor
a construção do compositor
a composição
não se
entendem
imersos
em silêncio
bicos finos
de saltos
acordes
a música
não soçobra
no último
arpejo
*
as patas
do piano
o piano
não é
animal
domesticável
Yoshilisa Taira: Pentalfa (1974)
Yoshilisa Taira: Pentalfa (1974)
o muro mergulha no lago
perdido em si mesmo o labirinto se esvai
em contorções em volutas
de fumaça
o poste aceso ao contrário
#
perdida em si mesma uma bala
aloja-se em um crânio assustada
mãos
no piano
certas
teclas
claras
escuras
limpas
límpidas
azuis
vermelhas
acesas
apagadas
aparecendo
desaparecendo
chegando
saindo
as mãos
o piano
o pianista
o toque
o teclado
o silêncio
o som
o tom
o sentido
o zero
o zênite
o tique
o taque
os dentes
do teclado
suaves
fortes
francas
nuas
sólidas
concretas
Ouvindo High
Window, de Jo Kondo
fundo
forma
fármaco
ábaco
só
silêncio
beijo
tapa
soco
plím
plém
piano
mão
teclado
salário
sol
sovaco
virilha
estribilho
canção
só som
sem som
pausa
poesia
risco
rasgo
traço
zíper
seco
pedra
prego
cabeça
cabaça
nu
cru
cu
o pingo
a dor
lateja
o sangue
estupor
de cimento
pedra
prato
padrão
tijolo
ladrilho
pronto
tudo
passo
nada
passa
nunca
hoje
sempre
amanhã
acaso
certo
errado
o teclado
falso
o fundo
forma
superfícieo conteúdo
o sorriso
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